Natureza jurídica das criptomoedas e a tributação para pessoas físicas para além do GCAP – ConJur

é procurador em Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Advogado em FV Consultoria e Advocacia mestre em Direito Tributário e especialista em Processo Civil.
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15 de março de 2024, 21h45
O conhecimento impulsiona o surgimento de revoluções sociais, as quais, por conseguinte, acarretam a necessidade de acomodação entre as posições consolidadas na comunidade e o novo, a evolução, que, por vezes, é observada com desconfiança pela sociedade. Nessa perspectiva, afirma-se que o mundo está vivendo uma revolução econômica, na qual os bens estão se tornando imateriais. Um exemplo são os payment tokens, que não se confundem com utility tokens; security tokens e tokens não fungíveis.
Desde já, destaca-se que objeto desse trabalho visa aos payment tokens. Sendo certa a existência de controvérsia quanto à natureza jurídica desse ativo, tem-se que parte da doutrina advoga se tratar apenas de um ativo intangível, cuja finalidade é servir de permuta. Tal posicionamento, embora correto, precisa ser refinado, visto que qualquer ativo em que as partes possuam interesse, pode ser alvo de permuta. No entanto, para além de uma simples troca, o Estado pode resguardar o referido ato ao apontá-lo como um meio de pagamento.
Nessa toada, é importante ressaltar que um meio de pagamento vai além de uma simples moeda. Explica-se: O signo “moeda” comporta quatro características para receber tal denominação, quais sejam: (1) meio geral de viabilizar trocas; (2) reserva de valor; (3) unidade monetária; (4) instrumento de pagamento. Tais especificidades correspondem ao elemento denotativo da expressão, sendo certo que, a depender do sistema monetário do país, algumas características podem estar presentes de forma mais ou menos intensa.
A necessidade de os quatro elementos estarem presentes decorre de um sentido denotativo classificatório, em que a ausência de um deles torna o ativo um mero instrumento de pagamento. Isto é, um meio de pagamento pode representar a pretensão de um ativo ser moeda, todavia, diante da ausência de uma de suas características, a suposta moeda servirá apenas como um meio de troca ou pagamento.
Para tornar o tema mais claro, cumpre mencionar que, em países cuja moeda legal (responsável por garantir a soberania/higidez do padrão monetário) não possui uma das características, observa-se que a população opta por referenciar os valores reais de produtos e serviços em outro ativos (como Argentina, em que a economia é dolarizada). Feita essa breve contextualização, passa-se a analisar cada expressão:
Cumpre ressaltar que a unidade monetária é uma convenção social na qual determinada mercadoria ou serviço tem o seu valor estipulado de forma abstrata, uma vez que determinado produto equivale à quantia que outras pessoas aceitam pagar. Assim, observa-se que “valor” é uma noção relativa formada pelo binômio “escassez” e “utilidade”.
Por conseguinte, o valor decorrente desse binômio pode estar atrelado ao “uso” (satisfaz as necessidades do indivíduo de forma direta) ou a “troca” (satisfaz as necessidades da pessoa de forma indireta). É de se destacar que as moedas cuja utilidade de uso se restrinjam à troca, não possuem qualquer valor de uso, apenas valor de troca futura, o que conduz à ideia de que o valor de uso corresponde, em verdade, ao valor da troca.
A conclusão no sentido de que o valor de uso da moeda representa o valor de troca, nesse diapasão, direciona, também, à afirmativa de que a única relevância da estipulação do valor da troca é o estabelecimento de uma ferramenta comunicacional que explicite as equivalências de preço do mercado;
Acerca dos meios de pagamento, salienta-se que o Brasil adotou seis classes de agregados monetários, classificados de acordo com a sua liquidez. A primeira delas, M0, é a base monetária restrita, equivalente ao dinheiro criado pelo Banco Central (Bacen) e às reservas bancárias, que decorrem do dinheiro depositado no Sistema de Transferência de Recursos (STR) e do dinheiro contido na própria instituição financeira.

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Destaca-se que é a partir deste valor que se observa o multiplicador monetário, sendo este correspondente ao aumento da oferta da moeda, em razão do índice da razão fracionária.
A classe M1 seria o próprio pagamento, ocorrendo através da circulação do papel moeda ou do depósito, à vista, no sistema bancário. Neste caso, a instituição financeira, ao reconhecer o pagamento, sinaliza a escrituração do crédito em favor do beneficiário.
A M2, além das previsões contidas no M1, engloba também o Depósito Especial Remunerado, os depósitos de poupança, e os títulos emitidos por instituições depositárias.
A M3 corresponde ao M2, acrescido das quotas de fundos de renda fixa e títulos compromissados do governo em poder público, e não considera aqueles que estão em poder de bancos e fundos de investimento.
Além dos meios de pagamentos restritos (M1) e ampliados (M2 e M3), existem ainda as classes M4 (M3 + títulos públicos de alta liquidez em poder de bancos e fundos de investimentos) e M5 (M4 + capacidade aquisitiva dos cartões de crédito).
Antes de analisar a viabilidade de alguns criptoativos serem utilizados como meios de pagamento, ou até mesmo como moedas estrangeiras [1], que fazem a função de meio de pagamento, esclarece-se que toda palavra possui certo grau de indeterminação.
Assim, é necessário afirmar que os criptoativos precisam conjugar tanto as características denotativas (possuir valor e ser criptografado) como os elementos conotativos (observar a finalidade do ativo). No caso de payments tokens, que, a partir de agora, serão denominados apenas pela expressão “criptomoedas”, trata-se de ativos cuja finalidade é servir como meio de pagamento. Portanto, a regulação tributária deve seguir o equivalente à de outros meios de pagamento.
Nesse caso, parece incompleto o tratamento conferido pela Secretaria de Receita Federal (SRF) quanto à forma de incidência do Imposto de Renda, no caso da percepção de criptomoedas. Sobre o tema, a SRF, na pergunta 619, aduziu que a tributação da renda é verificada no caso de ganho de capital entre o momento da aquisição e o momento da alienação do ativo. Ocorre que tal sistemática diferencia o percebimento de uma quantia, em razão da prestação de um serviço prestado, por depósito bancário e criptomoedas.
Explica-se: no primeiro caso, a tributação por fato acréscimo ocorre no momento do pagamento, enquanto no segundo caso, apenas na realização do ativo por ganho de capital. Essa diferenciação, com a devida vênia, parece incorreta, pois, se a criptomoeda é um payment token, sua finalidade primordial é servir de instrumento de troca e, portanto, não há razões para aplicar sistemáticas diversas entre um pagamento em depósito bancário ou cartão de crédito, e um pagamento em criptomoedas.
Assim, não se compartilha da ideia, hoje, admitida pela SRF, no sentido de que apenas no cash-out é que ocorre tributação do IR. Manter essa ideia equivale a afirmar que, apenas no momento da monetização do crédito bancário para dinheiro, ou seja, no ato de transformar um crédito bancário em dinheiro em espécie, é que deve haver a tributação do Imposto de Renda.
Assim, adota-se, para fins de determinação da natureza jurídica das criptomoedas, primordialmente, o conceito de meios de pagamento. Nesse diapasão, observa-se a Lei nº 14.478/2022, que, no art. 3º, parágrafo único, insere ao rol das atribuições do BACEN a fiscalização dos arranjos de pagamento das criptomoedas.
Para além, aduz-se ainda que, caso se entenda que as criptomoedas são um câmbio não convencional utilizável como um instrumento de pagamento, é possível atrair a incidência da Lei nº 14.286/2021, que versa sobre o novo marco cambial do Brasil, de forma supletiva (jamais de forma integral, pois o inciso I, do artigo 3º, excluiu da definição de criptomoedas as moedas estrangeiras).
Acerca do tema, a referida legislação é um importante meio para servir de inspiração e preenchimento de lacunas às normas brasileiras de circulação de criptomoedas, reconhecendo, inclusive, a eficácia liberatória das obrigações pagas em criptomoedas.
Nesse caso, conjugando os artigos 3º e 5º, da Lei nº 14.478/2022, com o artigo 13, VIII, da Lei nº 14.286/2021, seria possível aduzir que o Conselho Monetário Nacional poderia: (1) contemplar hipóteses nas quais os pagamentos realizados em criptomoedas seriam admitidos integralmente com eficácia liberatória e; (2) regulamentar as Exchanges para que essas assumam papel similar ao das pessoas jurídicas autorizadas a operar com o câmbio, previstas no artigo 13, VIII, da Lei nº 14.286/2021.
Conforme citado acima, a SRF, por meio do questionamento nº 619, aduziu, ainda, que os ganhos obtidos por alienação de moedas “virtuais” devem ser tributados através do ganho de capital.
Em que pese o entendimento, ousa-se, com a devida vênia, discordar parcialmente. Isso porque as criptomoedas são, primordialmente, destituídas de qualquer valor de uso, exceto ser meio de troca. Diante disso, independentemente de haver legislação de direito privado regulando as criptomoedas como meio de pagamento (algo que existe — artigo 3º, da Lei nº 14.478/2022), o direito tributário não se vincula aos institutos do direito civil, diante de sua parcial independência, disposta no artigo 109, do CTN.
Desse modo, defende-se que, em permutas de bens cuja finalidade do ativo trocado seja servir como instrumento de operacionalização de trocas, seja aplicada a sistemática da tributação da renda por obtenção de receita (mutação).
Salienta-se que apenas o dinheiro papel possui curso forçado e, portanto, as demais modalidades de pagamento podem ser recusadas em estabelecimentos comerciais, tal qual a moeda escritural decorrente do pagamento por cartão de crédito.
Portanto, a principal função das criptomoedas deve ser operacionalizar trocas comerciais e, residualmente, ser vista como investimento, ao contrário da ideia propagada de que as criptomoedas são exclusivamente um investimento.
Desse modo, por entender que esse ativo, em regra, é destituído de qualquer valor, exceto servir como operacionalizador das relações jurídicas, defende-se que o IR não seja calculado apenas sobre o ganho de capital na realização do ativo, uma vez que o lucro da atividade gera a mutação patrimonial pelo ingresso de receita.
Para além dessa possibilidade, mantendo tal ativo no patrimônio, e havendo posterior transferência ou realização, por se tratar de um ativo de caráter especulativo, pode-se aplicar eventual ganho de capital sobre a diferença do valor de ingresso inicial.
A sistemática ora proposta, embora diferente do ponto de vista adotado pela Receita, guarda similaridade com o percebimento de moeda estrangeira à título de pagamento. Isso porque a moeda estrangeira no Brasil, além de não ser a moeda legal e não possuir curso forçado, é destituída da unidade de valor adotada em nosso país, podendo oscilar conforme políticas cambiárias internas e externas.
Por derradeiro, defende-se que, para pessoas físicas [2], na hipótese de ser lícita a retribuição em criptomoeda pela atividade prestada, o pagamento se dá de forma equivalente à mutação, devendo tal quantia ser convertida para o valor da moeda brasileira na data de ingresso no patrimônio, conforme dispõe o inciso IV, do artigo 47, do RIR.
Note-se que o fundamento pelo qual deve haver a conversão da quantia recebida em criptomoedas para o Real reside na necessidade de reforçar a confiabilidade no sistema monetário brasileiro, que serve tanto para o particular pagar tributo quanto o Estado promover pagamentos ao particular. Por sua vez, se a retribuição em criptomoeda for ilícita, como, por exemplo, o pagamento de salário em bitcoins, estar-se-á diante de uma violação à lei, cabendo, nesse caso, a aplicação do inciso X, do artigo 47, do RIR.
Além da tributação em razão da contraprestação pelo trabalho desempenhado, observa-se que eventual ganho de capital sobre as criptomoedas no momento da alienação também pode ser tributado, devendo, para tanto, aplicar-se o artigo 154, do RIR. O dispositivo em tela versa sobre o GCAP, no qual a base de cálculo consiste na diferença positiva entre o valor da alienação e o custo da aquisição, conforme dispõe o §3º do artigo em tela.
Em relação à grandeza “valor da alienação”, não subsistem controvérsias, todavia, sobre a importância “custo de aquisição”, deve-se observar a possibilidade de as criptomoedas terem sido adquiridas em momentos diferentes, por valores distintos. Nesse caso, nota-se os §§5º e 6º, do artigo 7º, da IN nº 118 de 2000, cuja norma é no sentido de que o custo médio da aquisição de todas as moedas será a base para analisar eventual ganho na venda.
Desta feita, embora tais dispositivos estejam dentro do capítulo “moeda estrangeira mantida em espécie”, pela similaridade do tema criptomoedas com moedas estrangeiras que servem como meio de pagamento, defende-se que essa diretriz também deve ser aplicada a tais ativos.
 
 
CORTEZ, Tiago Machado. Moeda, Estado e Direito: O papel do Estado na ordem monetária e seu controle. Universidade de São Paulo: Faculdade de Direito, 2004.
CUNHA FILHO, Marcelo de Castro. Bitcoin e confiança: análise de como as instituições importam. São Paulo: D’Plácido; 2021.
FRANCO, Gustavo. A moeda e a lei: uma história monetária brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
GRAEBER, David. Dívida: os primeiros 5 mil anos. São Paulo: Três Estrelas, 2016.
OLIVEIRA. Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: IBDT, 2020
QUEIROZ, Luís Cesar Souza de. Imposto sobre a renda: requisitos para uma tributação constitucional. Rio de Janeiro: GZ, 2020.
[1] O Brasil admite que o Direito Especial de Saque, moeda criada pelo FMI, seja considerado moeda estrangeira. Portanto, não há exigência de que moeda estrangeira, necessariamente, seja criada por um país. Acerca do assunto: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/todasmoedas
[2] E, para as pessoas jurídicas também, guardada as peculiaridades, se a atividade principal é a exploração ou não da circulação de criptomoedas.
é procurador em Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Advogado em FV Consultoria e Advocacia, mestre em Direito Tributário e especialista em Processo Civil.
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