Inovação e tecnologia devem ter foco em beneficiar o cidadão – Correio Braziliense
Lisboa — A tecnologia como fonte de transformação da sociedade é um movimento sem volta. Ainda que alguns resistam em se render às inovações que chegam aos afazeres mais comuns do dia a dia e revolucionam o funcionamento de empresas e governos, o mundo digital se expande a uma velocidade impressionante. O simples ato de comprar uma roupa ou um tênis e mesmo decisões que envolvam bilhões de reais já não passam mais pelo uso de ferramentas com as quais nos acostumamos. Agora, o metaverso, a internet das coisas (IoT) e a inteligência artificial dão as cartas, em maior ou menor proporção, dado o nível de digitalização da economia e da sociedade. E o Brasil caminha para o topo dessa nova realidade.
Ao longo da última semana, esse mundo novo se escancarou no Web Summit de Lisboa, um dos maiores eventos de tecnologia do mundo. Mais de 70 mil pessoas — um recorde — de 160 países se juntaram para apresentar produtos e soluções e debater as tendências para os próximos anos e décadas. Por tudo o que se viu, quem não embarcar nessa nova onda ficará pelo meio do caminho. Isso vale, sobretudo, para os países que ainda relutam em admitir a velocidade com que as mudanças climáticas estão transformando, para pior, a vida de milhões de cidadãos. As inovações devem, sim, ser usadas para tornar a vida de pessoas, empresas e governos mais fácil, contudo, tornaram-se imprescindíveis para conter a destruição do planeta e garantir o futuro das próximas gerações.
“Não há como dissociar a tecnologia do meio ambiente”, diz Viviane Martins, CEO do Grupo Falconi e da Falconi Consultores, com atuação em 40 países. “Inovar é mitigar riscos. É um jogo de ganha-ganha”, acredita. Para ela, apesar de as empresas ainda terem muito o que avançar tecnologicamente, o Brasil tem enormes vantagens competitivas na questão ambiental, a começar pela matriz energética, em maioria, renovável. A executiva lembra que, na indústria, há setores que viram na questão ambiental uma forma de tornar suas operações mais sustentáveis. Além de reduzirem o consumo de água, passaram a produzir a energia que consomem, inclusive usando como insumo o lixo que polui as cidades. “Toda essa mudança foi possível graças às novas tecnologias disponíveis”, acrescenta.
Na avaliação de Viviane, é importante deixar claro que, no caso das empresas, recorrer às inovações trazidas pela tecnologia não quer dizer sucesso garantido, pois é necessário que as novas técnicas agreguem valor aos negócios. “Inovação é diferente de invenção. Não é só comprar uma tecnologia nova. Existem caminhos a serem seguidos para que os projetos não resultem em frustração”, frisa. Todas as etapas de avaliação devem ser cumpridas para que os ajustes necessários ocorram. “Há muitas armadilhas nos processos. Por isso, há métricas e metas para monitorar o alcance das ferramentas utilizadas e adaptá-las, se preciso”, explica. Outro ponto importante: “Há várias realidades dentro do Brasil, e o que se aplica a grandes empresas não se encaixa para firmas de menor porte”.
Presidente da Cateno, empresa que processa as operações do cartão de crédito Ourocard, do Banco do Brasil, Luíz Felipe Monteiro afirma que, independentemente do ritmo de absorção das novas tecnologias, o processo de inovações é irreversível. “Na velocidade com que o mundo caminha, de metaverso, de web 3 (a nova versão da internet), não há como sobreviver sem inovação. São essas tendências que definirão a estrutura e o futuro de como a nossa sociedade se relacionará, seja do ponto de vista econômico, seja na forma de consumir”, ressalta. Essa nova realidade, acrescenta, exige que todos estejam conectados aos ecossistemas que têm se dedicado às transformações digitais.
No ramo em que a Cateno atua, a revolução tecnológica chegou para valer. “O futuro dos meios de pagamentos será digital, instantâneo e de baixo custo”, assinala. Um exemplo disso é o Pix, que permitiu a entrada de milhões de brasileiros no sistema financeiro formal. Monteiro destaca, ainda, o avanço do consumo digital. “O comércio eletrônico vem crescendo a taxas entre 30% e 35% ao ano. E o mercado de pagamento digital aponta salto anual entre 25% e 30%. É o retrato da digitalização do dinheiro. As pessoas não querem mais usar papel moeda”, enfatiza. “Vivemos uma bancarização acelerada no Brasil, graças, principalmente, às fintechs e aos neobancos. O futuro do nosso negócio é digital.”
O mundo novo vale para o governo, diz Monteiro, um dos criadores do gov.br, portal e aplicativo que permitem acesso aos serviços públicos digitalmente. “Mais de 130 milhões de brasileiros utilizam o gov.br todos os meses. O sistema permitiu a redução da burocracia e do tempo de espera em filas”, ressalta. Ele acrescenta que, durante a pandemia da covid-19, quando as unidades de atendimento do governo estavam fechadas, todos os serviços continuaram sendo prestados on-line, de forma a favorecer a população, sobretudo, a mais carente. “Governos serão instituições totalmente digitais, invisíveis no dia a dia, mas sempre dando suporte aos cidadãos, com privacidade”, reforça.
“Estudo recente do Banco Mundial (Bird) mostra o Brasil com o sétimo governo digital mais maduro do mundo”, diz o presidente da Cateno. “Estamos no mesmo nível de Coreia do Sul, Reino Unido, Dinamarca, Estônia”, emenda. Ele crê que, independentemente do governo de plantão, a digitalização da máquina pública — isso vale para estados e municípios — continuará a todo vapor, porque é bom para todos. “O trabalho construído chegou a um ponto de não retorno”, frisa.
A tecnologia não está mudando apenas a forma de se consumir, derruba, também, barreiras para que os cidadãos se movimentem pelo mundo. Thiago Huver, sócio e advogado da Martins Castro, acaba de lançar o Mobi, aplicativo que permite aos brasileiros que desejam obter a cidadania portuguesa possam agilizar os processos, antecipando-se a eventuais problemas. “O sistema permite a busca de informações disponíveis no Ministério da Justiça de Portugal, ajuda a resolver pendências e facilita o acesso a dados necessários para quem deseja viver no país europeu”, detalha. Auxilia, também, na revalidação de diplomas, um dos maiores entraves para que profissionais brasileiros atuem no mercado português.
“Usamos informações públicas às quais, muitas vezes, não são dadas a transparência devida. E nosso aplicativo filtra tudo 24 horas por dia, explica o que tem de ser feito, tornando o tempo de solução de processos de residência e de cidadania em Portugal menor”, assinala Huver. Ele garante, ainda, que o aplicativo é gratuito e pode ser usado por empresas que contratam mão de obra no exterior, especialmente na área de tecnologia da informação. “A gestão desses profissionais demanda tempo e segue, muitas vezes, legislações bem diferentes. Pelo aplicativo, o controle fica mais fácil e menos oneroso”, garante.
É com os olhos voltados para o exterior que a Agência de Promoção à Exportação (Apex) levou 70 startups para o Web Summit, quase cinco vezes mais que no ano anterior (15). “As startups brasileiras querem se internacionalizar, e o mundo está interessado nessas empresas do Brasil”, afirma Clarissa Furtado, gerente de Competitividade da agência. Ela lembra que esse mercado está em efervescência. Tanto que o país tem hoje 30 unicórnios, startups avaliadas em mais de R$ 1 bilhão. “Há 10 anos, não havia nenhuma”, frisa. Além disso, estão em funcionamento mais de 800 hubs de inovação, com representantes dos principais setores da economia, com destaques para saúde, educação, varejo, agro e financeiro.
Na avaliação de Clarissa, os maiores entraves para que as startups e outras empresas se internacionalizem são o medo e a falta de conhecimento. Com isso, muitas se acomodam, tirando proveito do enorme mercado brasileiro. “O nosso trabalho é justamente dar instrumentos para que os empresários possam dar passos estratégicos, e isso passa por boas informações dos mercados que eles querem atuar”, diz a executiva. Ela ressalta que contam a favor das startups o fato de os empreendedores brasileiros serem vistos como confiáveis e de oferecerem produtos inovadores. “Há, ainda, a questão da sustentabilidade. Temas como água e energia têm despertado interesse crescente entre os investidores estrangeiros”, acrescenta.
Gerente de Transformação Digital da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), Adryelle Fontes conta que ainda há um longo trabalho a ser feito entre as micro e pequenas empresas no sentido de digitalizá-las. “Muitas dessas firmas não sabem o que fazer com as tecnologias disponíveis. Então, tratamos de auxiliá-las nesse processo, para que não fiquem para trás, sem competitividade”, afirma. Dentro dessa estratégia, a ABDI lançou um programa que já qualificou mais de 400 empresas e os resultados impressionam, com aumento no faturamento e na empregabilidade.
A meta da ABDI é ampliar o programa de digitalização para 20 mil empresas até o fim de 2023. Para Andrea Macera, assessora da presidência da agência, esse incremento é fundamental pois nem a metade das firmas de pequeno porte do país usa a tecnologia a seu favor, segundo levantamento realizado pela Fundação Getulio Vargas (FGV). “Pode parecer chavão, mas muitas dessas empresas precisam passar por uma mudança de mentalidade, têm de entender que necessitam colocar os clientes no centro das decisões, entender os que eles querem. Isso passa pela digitalização dos negócios”, enfatiza.
Transformar pessoas e fomentar o empreendedorismo são missões seguidas à risca pelo Cubo, ecossistema que conta com mais de 400 startups, que atuam em cerca de 20 segmentos do mercado. “Apoio é fundamental, sem isso fica difícil dar escala aos negócios”, ressalta Mirella Lisboa, head de Corporate e Parcerias do hub que é liderado pelo Itaú. Todos os projetos beneficiados, porém, devem estar voltados para a área tecnológica. “Nosso objetivo é dar todo suporte para que bons negócios deslanchem. Isso envolve financiamento, aceleradoras, escritórios de advocacia, consultorias olhando as bases das diversas startups. Sabemos que os custos têm peso relevante nesse processo”, emenda.
Somente em 2021, as startups da comunidade Cubo receberam mais de R$ 3 bilhões em investimentos. O resultado dessa parceria pode ser medido pelo faturamento dos negócios, que chegou a R$ 2,5 bilhões, com mais de 7 mil empregos gerados. “Houve casos em que o faturamento das startups aumentou três vezes entre 2020 e 2021”, frisa Mirella, lembrando que o ecossistema conta com mais de 30 parceiros estratégicos e mais de 60 corporações ativas na comunidade.
Assim como os resultados alcançados são expressivos, as exigências para participar do Cubo são rígidas. Primeiro, é avaliado o momento da startup, se tem alguém que já mostrou que a tecnologia desenvolvida é necessária. Depois, analisa-se o quão maduro está o empreendimento. Também entra na conta o perfil dos fundadores da startup e se algum deles tem história no mercado. Outro ponto fundamental é se a estrutura é favorável ao recebimento de investimentos. Por fim, o motivo do porquê quer participar do Cubo. “Todos os anos, os integrantes passam por avaliação”, explica Mirella.
Chefe da área de Metaverso da startup R2U, Valéria Carrete enfatiza que aqueles que quiserem fazer parte do mundo que está em transformação necessitam estar conectados com os avanços trazidos pela tecnologia. “Não é impossível, mas é muito difícil hoje viver sem inovação”, diz. “Nós, como consumidores, queremos mais comodidade, melhores serviços, comprar quando quisermos. E tudo demanda tecnologia”, reforça. Esses desejos passam, hoje, pela realidade aumentada (3D) e pelo metaverso.
A executiva reconhece, porém, que o varejo brasileiro ainda está atrás do que já se vê no mundo em relação a essas inovações. “O que acontece no mundo sempre tem um delay no Brasil. Agora, em 2022, estamos vendo o que aconteceu em 2016. Os empresários brasileiros, por tudo o que já sabemos, são mais conservadores quando o assunto é investimento. Esperam sempre um pouco mais, mas perdem oportunidades em vendas e em engajamento de clientes”, assinala.
Aos poucos, no entanto, passos relevantes são dados. Para Valéria, o varejo brasileiro está saindo de um modelo focado em preços competitivos, em que a tecnologia não é um dos pilares, para construir os superapps. “Não precisa ser o mais tecnológico possível, mas inovação faz parte das nossas vidas como consumidores e como profissionais”, diz. Ela acredita, ainda, que o mundo verá cada as pessoas usando a tecnologia para ficarem mais desafogadas do trabalho e poderem se dedicar mais ao que realmente interessa, ao conhecimento, ao estudo e à socialização.
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