Como a regulação das criptomoedas caminha para se tornar realidade no Brasil – Época NEGÓCIOS
Mercado de criptomoedas cresce no Brasil e no mundo – e caminha para a regulação (Foto: Worldspectrum/Pexels)
De US$ 13 milhões de dólares, ao fim de 2016, para US$ 3 trilhões, em 2021. Esse é o salto de crescimento que o mercado de criptomoedas teve, ao longo de cinco anos, em relação à capitalização, segundo dados da CoinMarketCap. Uma evolução que foi acompanhada também pelo surgimento de mais criptoativos. Em 2017, existiam cerca de 1.300; meia década depois, esse número passa de 10 mil.
No Brasil, uma pesquisa conduzida pela Escola de Economia de São Paulo da FGV, em parceria com a gestora Hashdex e a University Blockchain Resarch Initiative (UBRI), mostrou que o número de investidores brasileiros com posições nas criptos dobrou de 2020 para 2021 – 38% deles adquiriram suas primeiras posições nesse mercado entre 2017 e 2019.
À medida que o setor cresce, com mais investidores individuais e institucionais, avança no mundo também outro movimento: o de regulação das criptomoedas, com a aproximação de governos e do sistema financeiro tradicional.
No Brasil, esse processo acontece por alguns caminhos. No mercado regulado, são lançados produtos que permitem o investimento nas criptomoedas a partir da B3 e sob o guarda-chuva dos reguladores; no Congresso, legisladores trabalham para a criação de um marco regulatório para os ativos digitais; no Executivo, o Banco Central dá novos passos para o lançamento de sua própria moeda virtual, baseada na tecnologia blockchain, o Real Digital.
Criado em 2008 e negociado pela primeira vez em 2009, o Bitcoin foi a gênese das criptomoedas. Foi concebido em um white paper assinado por Satoshi Nakamoto, o pseudônimo para a pessoa, ou o grupo de pessoas, que criou o Bitcoin. A autoria do projeto, até hoje, é mantida sob anonimato.
Em seu artigo, Nakamoto descreve o funcionamento e a estrutura do dinheiro eletrônico que “permitiria que pagamentos online fossem enviados diretamente de uma parte para outra, sem passar por uma instituição financeira”. Quase uma década depois, economias de todo o mundo estudam as formas possíveis de criarem suas moedas eletrônicas, enquanto bolsas de valores começam a trazer o “dinheiro eletrônico” para dentro de seu sistema financeiro.
White Paper Satoshi Nakamoto foi a gênesis das critptomoedas (Foto: Reprodução/Bitcoin:A Peer-to-Peer Electronic Cash System)
Mas por que só mais de dez anos depois? Samir Kerbage, diretor de tecnologia da Hashdex, explica que o processo é necessário pelo volume crescente de investidores em criptomoedas e também em razão da demanda social que a tecnologia tem gerado.
Segundo ele, esse movimento pode ser explicado usando o exemplo do que aconteceu com a internet. A tecnologia que nasceu na década de 1970, com pouca aplicabilidade, levou algumas décadas para se tornar uma rede de soluções diversas que molda a estrutura do mundo de hoje. “Em 1995, se eu te falasse que a internet ia permitir uma teleconferência, em tempo real, usando uma qualidade de vídeo 4K, você ia rir da minha cara. Na época, baixar um MP3 de dois minutos demorava 12 horas. Essa é a diferença do blockchain de 2010, de 2011, para o blockchain de hoje”, diz Kerbage.
Para o diretor da Hashdex, além de um mercado que atrai cada vez mais dinheiro – e, portanto, atenção de atores institucionais -, o avanço dos reguladores rumo às criptos pode ser explicado pela evolução na infraestrutura blockchain e pelo progresso na aplicabilidade da tecnologia – que atrai cada vez mais empresas e empreendedores. “A evolução da regulação é uma resposta para o aumento da demanda da sociedade”, resume.
Fabio Araujo, coordenador dos trabalhos sobre a moeda digital do BC, destaca ainda que os dois últimos anos, com a pandemia do coronavírus, aumentaram a necessidade de diversos países por meios de pagamentos digitais que fossem eficientes e seguros para atender a população. “Os bancos centrais já estavam acompanhando [esse mercado], mas chegamos a um ponto em que os BCs viram que as pessoas buscavam essas tecnologia. Então tivemos que criar formas seguras para isso”, diz.
Daniel Steinberg, que é Global Regulatory Counsel da Bitso, exchange de criptomoedas, enxerga três esferas que explicam os ventos institucionais que sopram em direção às criptos: a social, a econômica e a jurídica. “No aspecto mais social, as pessoas têm visto nas criptos uma forma de usar o dinheiro de outras maneiras. No aspecto econômico, há uma percepção mais clara de que as moedas digitais podem ser usadas também como reserva de valor. Do ponto de vista jurídico, existe um entendimento maior das formas de se usar a tecnologia blockchain e os contratos inteligentes para trazer mais segurança ao dia a dia das pessoas”.
Até o início de 2021, o investidor brasileiro que buscasse ter uma parte de sua carteira alocada em criptomoedas não encontraria uma opção viável dentro do mercado regulado, nem da corretora por onde faz suas compras de ações. Foi em abril do ano passado que a B3, a Bolsa de Valores de São Paulo, lançou o HASH11, seu primeiro ETF de criptomoedas – e se tornou uma das primeiras bolsas do mundo a ter um fundo de índice com criptos.
Primeiro ETF referenciado a um índice de criptomoedas foi negociado na B3 em 26 de abril de 2021 (Foto: Divulgação/B3)
Os ETFs (sigla para Exchange Traded Fund) são fundos negociados em Bolsa que representam uma determinada carteira ou índice de referência. No caso do HASH11, o ativo “replica” o desempenho do Nasdaq Crypto Index (NCI), desenvolvido pela bolsa de tecnologia de Nova York com objetivo de refletir globalmente o mercado de criptos. Dez meses depois do lançamento, o ETF inaugural da B3 no mercado cripto é hoje o segundo com o maior número de cotistas.
“Antes, acho que muitas pessoas tinham medo de operar com contrapartes que não são reguladas. E os criptoativos são desafiadores – desde o risco que representam até a tributação. Era um mercado para quem estava disposto a tomar mais risco”, avalia Samir Kerbage, diretor de tecnologia da Hashdex. “Hoje, é um produto possível para qualquer investidor. E você pode operar dentro da sua corretora tradicional.”
Assim como as demais classes de ETFs, os fundos de criptos passam pelo escrutínio da CVM, a Comissão de Valores Imobiliários. Depois, diferentemente da compra direta das criptomoedas, que acontece por exchanges independentes da regulação, os ETFs podem ser negociados por meio de corretoras ou distribuidoras de títulos e valores mobiliários tradicionais, em uma compra similar à das ações.
Hoje, além do HASH11, a B3 conta com 7 ETFs do tipo e fundos com exposição no mercado de criptomoedas. No último ano, segundo uma pesquisa da Hashdex com dados da CVM e da B3, o número de investidores neste mercado passou de 30 mil pessoas para 410 mil.
Como são operados dentro do sistema regulado da B3, os produtos financeiros ligados às moedas digitais precisam seguir as regras dispostas pela CVM. De maneira geral, os ETFs costumam ser boas opções de diversificação para os investidores, além de terem vantagens como taxas de administração mais baixas e investimento inicial menor.
Para Samir Kerbage, CTO da Hashdex, ETFs tornaram as criptomoedas mais acessíveis para investidores que temiam risco de investimento direto nesses ativos (Foto: Divulgação)
Para Kerbage, outra vantagem do investimento, quando comparado a uma exposição direta aos criptoativos, é um acesso diversificado ao setor. “Em vez de você ter que escolher sozinho quais ativos comprar, pode simplesmente adquirir o mercado inteiro, com a rodada do índice. Então você tem a exposição a uma cesta de ativos que vai acompanhar esse mercado à medida que ele evolui.”
Para além dos ETFs e fundos, o interesse crescente dos investidores tem ampliado os planos da Bolsa. A estratégia futura da B3 envolve o desenvolvimento de uma infraestrutura para criptomoedas, para facilitar a negociação desses ativos. Em evento a investidores no fim do ano passado, o presidente da B3, Gilson Finkelsztain, disse que era “natural” a expansão da Bolsa para o mundo regulado das moedas digitais. “Não é uma bolsa de cripto, mas devemos entrar nesse mercado para oferecer serviços a quem negocia cripto”, afirmou na ocasião.
Para Rodrigo Monteiro, diretor-executivo da ABCripto, a Associação Brasileira de Criptoeconomia, o avanço de governos e do mercado tradicional em direção às criptos vem na esteira da expansão do setor. “É mais que uma tendência. É uma decorrência natural desse crescimento”, afirma. “Nós entendemos que toda economia, direta ou indiretamente, no futuro próximo, vai usar a tecnologia, vai rodar o blockchain de maneira descentralizada. Isso vai passar pela saúde, finanças, engenharia, arquitetura, direitos autorais e muitos outros”, avalia.
Mas será que o enlace institucional das moedas digitais vai mudar a natureza descentralizada e em rede desses ativos? Daniel Steinberg, da Bitso, acredita que não, pois o DNA das criptomoedas continua o mesmo. “A regulação sempre vem depois, na carona das transformações sociais”, diz. “A confiança social nesse mercado aconteceu de tal maneira que a regulação precisou acontecer, com um ambiente institucional que dê segurança para todo mundo. A regulação é boa para fazer com que todos os players joguem o mesmo jogo. Traz garantias para os usuários e para os atores institucionais, sejam as exchanges ou as empresas que fornecem produtos para criptos”, acrescenta.
Longe da Faria Lima, no Congresso Nacional, a discussão sobre esse mercado também avança em direção à criação de uma legislação que traga as criptomoedas para dentro do arcabouço regulatório. Duas propostas estão mais maduras no legislativo. No Senado, no fim de fevereiro, a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) aprovou o projeto do senador Flávio Arns (Podemos-PR). Na Câmara, tramita um texto similar, de autoria do deputado Aureo Ribeiro (Solidariedade-RJ), que foi aprovado na Casa em dezembro do ano passado e segue para o Senado.
Hoje, no mercado brasileiro, as criptos vivem um limbo jurídico. As empresas do setor não estão sob o guarda-chuva regulatório do Banco Central, porque as criptos não são consideradas moedas. Elas tampouco estão sujeitas à fiscalização da CVM, já que os investimentos também não são entendidos como títulos de valor mobiliário. No sistema financeiro regulado, o BC tem o controle sobre o funcionamento das instituições. A CVM, enquanto isso, tem como funções a regulamentação, controle e fiscalização do mercado de valores mobiliários.
Apesar das similaridades, os textos que tramitam apresentam algumas diferenças. Os dois projetos condicionam a operação de corretoras que negociam as moedas digitais a uma autorização de órgão regulador. Enquanto o PL 2303/15, da Câmara, no entanto, define o Banco Central como responsável pela regulação desse mercado, o PL 3.825/2019, no Senado, deixa a cargo do Poder Executivo, ao fim, a definição de órgão responsável pela fiscalização e supervisão do setor.
Segundo o senador Flávio Arns, a tendência é que a discussão dos dois projetos aconteça de forma conjunta no plenário do Senado, uma vez que o projeto do deputado Aureo Ribeiro trata do mesmo tema, e chegou recentemente aos senadores. A expectativa do parlamentar é que o debate seja iniciado ainda no primeiro semestre de 2022. “Apesar do crescimento do número de investidores em criptomoedas, as empresas que negociam os artigos virtuais não possuem qualquer supervisão ou fiscalização de órgãos governamentais, o que gera problemas graves no ordenamento jurídico e na economia popular”, avalia o senador.
No Congresso, projetos de lei propõem a criação de um marco regulatório para as crtipomoedas (Foto: Pexels)
Apesar de as empresas do setor verem com bons olhos o encaminhamento do projeto, algumas incertezas ainda preocupam o mercado. Rodrigo Monteiro, da ABCripto, questiona, por exemplo, a proposta de que as normas e a instituição de um órgão regulador para as criptomoedas fiquem a cargo, se o projeto do Senado for aprovado, do Poder Executivo. “Havia convergência entre os que acompanhavam o projeto de que o regulador seria o Banco Central. Todos concordaram com isso, todas as manifestações de todas as frentes interessadas no projeto de lei convergiram para o BC. Nós entendemos que essa é uma questão muito relevante para ficar sob o critério discricionário do Executivo de futuros governos.”
Segundo ele, o ponto mais relevante para a Associação, que reúne gigantes do setor como Mercado Bitcoin, Foxbit e Alter, é entender, daqui para frente, qual será o órgão regulador prioritário das moedas digitais. “Para estabelecer as condições de atuação, fiscalizar esta atuação e, eventualmente punir as condutas inadequadas, o melhor órgão que nós poderíamos ter seria o Banco Central”.
Outras dúvidas, no entanto, seguem em aberto. Victor Jorge, professor do MBA in company da FGV e sócio do escritório Jorge Advogados, explica que o texto do Senado funciona como um norteador para o mercado de criptoativos, mas não traz informações importantes, como quais seriam as exigências para que exchanges tenham licença para operar no país, ou quais os parâmetros que levariam a uma cassação dessa autorização.
“Eu acho que o legislador, nesse ponto, falhou um pouco ao não trazer critérios mais objetivos para se conceder uma licença, e para revogá-la depois”, diz Jorge. “Eu não acho que, necessariamente, o Banco Central tenha que ser o regulador. O que eu vejo como uma falha é o fato de não haver critérios mais objetivos dos limites onde o eventual regulador teria que operar – seja ele o BC, a Receita Federal, ou um novo órgão a ser constituído. Isso é importante para que não haja assimetrias regulatórias”.
Projetos no Congresso exigem que corretoras de moedas digitais passem por crivo regulatório para poderem operar – hoje, mercado está fora do guarda-chuva da CVM e do BC (Foto: Pixabay)
Além das dúvidas em relação aos parâmetros que autorizariam ou não o funcionamento de uma exchange de criptos no país, existem questões também sobre o nível de exigências para o setor. Juan Llanos, CCO da Exchange Ripio, avalia que o projeto de lei tem algumas passagens nebulosas – e alerta que um nível alto de burocracia seria prejudicial. “Por que isso, no final, irá impactar o consumidor final”, diz.
O executivo, que há 18 anos trabalha no mercado de criptos, destaca ainda que a proposta ignora um aspecto que poderia ser positivo para a economia cripto no país: regras que estimulem o desenvolvimento desse mercado. “Em um setor que tem movimentado bilhões de dólares em todo o mundo, por que não pensar em regras que incentivem esse serviço financeiro? Existem diversas oportunidades de progresso e estímulos que não vejo em nenhum governo na América Latina”.
Além de acompanhar o debate sobre a regulação das criptomoedas no Brasil, o Banco Central trabalha também em outro campo: o da criação de uma moeda virtual própria, o Real Digital. Trata-se de uma stable coin ou CBDC (Central Bank Digital Currency), moeda digital que é emitida por governos ou Bancos Centrais.
Desde 2020, o BC estuda a implementação da CBDC a partir de um grupo de trabalho que foi formalmente criado para o tema. Em maio do ano passado, a instituição publicou as diretrizes para a criação do Real Digital. E, no início de março, 10 meses depois, a instituição deu o primeiro passo para o lançamento da moeda: escolheu nove projetos que irão ajudar o BC no desenvolvimento da CBDC.
O chamamento foi feito a partir do LIFT, o Laboratório de Inovações Financeiras e Tecnológicas (LIFT), e selecionou nove projetos entre 47 propostas de 43 empresas. Entre os selecionados, estão desde grandes bancos, como o Santander e o Itaú, até companhias que já nasceram no setor cripto, como o Mercado Bitcoin e a Aave.
Sede do Banco Central, em Brasília; autoridade monetária, além de acompanhar debate sobre regulação das criptos, trabalha para criar sua própria moeda digital(Foto: Rodrigo Oliveira/Caixa Econômica Federal)
Fabio Araujo, coordenador dos trabalhos sobre a moeda digital do BC, conta que as reuniões de desenvolvimento já terão início no fim de março. “A gente pretende ter os projetos já em um estágio bem definido até o final de julho. Nosso papel é, a partir da colaboração, entender quais são as barreiras para os projetos e como o BC pode facilitar a criação do Real Digital. Precisamos saber se serão necessárias mudanças regulatórias ou novas plataformas, por exemplo, para viabilizar a moeda”, explica. Segundo ele, a fase piloto deve começar a ser testada ainda em 2022 – um processo pode levar até dois anos.
Mas, afinal, quais serão os usos práticos do Real Digital? Os projetos aprovados no LIFT trazem algumas pistas. O Santander, por exemplo, pretende lançar uma solução de entrega contra pagamento (DvP) para imóveis e automóveis. A ideia é facilitar, a partir dos contratos inteligentes, todos os trâmites financeiros que envolvam compra e venda desses bens – do pagamento à custódia. O Itaú planeja criar a interoperabilidade para outras redes de pagamentos CBDCs, o que permitiria a conexão de moedas de bancos centrais ao redor do mundo. Os projetos também propõem o uso do Real Digital conectado com a internet das coisas para a logística em e-commerce, os pagamentos offline e até o financiamento rural com rastreio de transações.
Como são programáveis, na prática é impossível saber hoje quais serão todos os usos possíveis da CBDC do Banco Central. “A gente espera que, saindo o Real Digital, novas funcionalidades sejam criadas todos os dias – e elas não serão desenvolvidas pelo BC, mas pelos agentes regulados. O desenvolvimento fica com a indústria. E isso fomenta a inovação. Nós vamos oferecer a plataforma, com capacidade de programabilidade, mas não o serviço”, explica Fabio Araujo. “Quem é criativo é o mercado, por isso a gente tem que dar uma plataforma na qual eles possam inovar de forma segura.”